
História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar
de Luis Sepúlveda
Contornos da dramaturgia
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Desta vez, em coprodução com o teatromosca, levantamos uma fábula. Modelo literário que, desde Esopo, vem concebendo alegorias para supostas normas de conduta.
Esta, é uma narrativa estratificada que nos conduziu a dois anéis de leitura dramatúrgica.
Num primeiro momento, a ludicidade de uma história encantatória contada por atores e envolvendo uma plateia de gerações diferenciadas.
Depois, o contexto de um mundo politicamente compósito em que Luis Sepúlveda se movimentou reunindo notas, pensamentos, ensaios, diarística, denotando o conhecimento fundo de um viajante. Sepúlveda foi um humanista, teria os valores da velha Europa no centro do seu pensamento, vertendo-os para os livros que escreveu.

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“(…) e é bom que saibas que contigo aprendemos uma coisa que nos enche de orgulho: aprendemos a apreciar, a respeitar e a gostar de um ser diferente.” — Zorbas, um gato grande, preto e gordo.
Toda a arte é imitação. Já o sabíamos da lição de Aristóteles. Todavia a tômbola do Mundo não se detém de nos rodopiar em torno: eis que voltamos ao discípulo de Platão - sua caverna e sombras. Se todo o Real é mimese de um compromisso que nos salva do absurdo, então regressados estamos ao tutor de Alexandre. Arte, História e Narrativa podem ser uma só ponte holística que dá ordem ao nosso caos interior. Porque talvez sejamos todos iguais. Se o soubermos aceitar.
Nesta fábula, de pendor dramatúrgico, Sepúlveda é herdeiro de Esopo, La Fontaine ou Perrault - mas não devedor: a sua voz própria de exímio contador de histórias convoca todas as dimensões do escritor de viagens, tramas de conflitos inusitados e uma visão do mundo sábia e cosmopolita, para oferecer um enredo em que nos confronta com uma verdadeira presentificação do real. Dito de outra maneira: o génio do autor está – entre outros aspetos - numa opção narrativa que, despida de seus textuais pretéritos, vemos acontecer diante dos nossos olhos e ouvidos, movida por um dispositivo teatral.

Ab ovo, a história convoca de facto, em termos de metanarrativa, a iminência do nascimento de um ovo: tolhida pelo miasma da contaminação do mar pela poluição com que a nossa espécie insiste em degradar o Mundo, uma gaivota é recebida por um gato que se compromete a uma derradeira súplica daquela migrante moribunda - cuidar do seu ovo e ensinar a vindoura cria a voar. Para além da atualidade dos temas das migrações e de uma crescente pegada ecológica, ressalta um terceiro ponto de importância determinante para manter este planeta um lugar possível: respeito pela diferença, empatia e compromisso coletivo.
Não cabe neste texto a intenção de recontar a história da fábula de Sepúlveda; não no ensejo, tão pouco na pertinência. Imperativo sim, é expor a sua dimensão narrativa, teatral e universal.
Eis-nos então diante de personagens, forças em confronto, um espaço e o enredo da fábula. Desde sempre que as histórias têm uma estrutura tríptica que advém de um tempo anterior à escrita: princípio - equilíbrio na adversidade; meio – conflito para resolver o que adverso se apresenta; desfecho - um novo e salvífico equilíbrio.
Aqui se ergue um enredo encantatório. A uma elegante felina velocidade e na portuária e cosmopolita cidade de Hamburgo. Quatro adjuvantes da recém-nascida gaivota – protagonizados pelo volumoso e doméstico Zorbas – tudo fazem para cumprir a sua promessa. É um compromisso de verdadeira cidadania e amizade que os une e esbate as diferenças de origem: casa, porto, cozinha de restaurante, e fabuloso gabinete de curiosidades (caótico antiquário), espaço da congeminação do plano de salvamento que permite a fusão de saberes vadios, domésticos e enciclopedistas.

Os antagonistas – uma plêiade de gatos vadios, ratazanas e até o símio de guarda do antiquário aos quais não falta – muito lá no fundo – uma réstia de interesses rapaces, mas também boas intenções que, à beira do paroxismo, os levam a negociar em prol da missão dos heróis da peça.
Porém, eis senão quando a juvenil gaivota se julga um gato – como bem se compreende e é uma evidência da Biologia em análogos casos. Sem sentimentalismos vãos, aqui – à beira do desfecho – entra o mote da dinâmica narrativa pela voz de Zorbas:
“Tu és uma gaivota. Todos gostamos de ti. És diferente e gostamos que sejas diferente. É muito fácil aceitar e gostar dos que são iguais a nós, mas fazê-lo com alguém diferente é muito difícil, e tu ajudaste-nos a consegui-lo.”

O impulso para o voo não decorre dos desenhos de máquinas voadoras de Leonardo da Vinci, de enciclopédias, tão pouco da imensa sabedoria dos gatos, que sabem até falar, às nossas escondidas, todas as humanas línguas de todos os cantos do mundo. É de um certo ponto de vista a Poesia e a sua carga de amor, capacidade de deslumbramento e empatia.
Zorbas tem um discreto especial carinho por uma gatinha que vive no vizinho terraço de um poeta – desta feita um ser humano. O incidente incitante para o desfecho, para usar um termo portuário – espaço de todos os cosmopolitismos – afigura-se-nos ancorado na mais ampla ideia de Amor. Um amor universal pela vida. Elipse: Zorbas fala com o Poeta na nossa língua e voamos para um novo e salvífico equilíbrio.
Assim são as nossas histórias: a fábula. Quando o espetáculo começa, dá-se o sortilégio na plateia. Aqui já não somos ricos nem pobres, novos nem velhos, tão pouco ignorantes nem sábios. Porque, em boa verdade, somos todos iguais.
Alexandre Sarrazola

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Luis Sepúlveda, escritor maior que através de uma fábula nos recorda o postulado de um momento histórico fundamental: a Revolução Francesa — reivindicação resoluta de Liberdade, de Igualdade, de Fraternidade, denegando a antiga ordem feudal, que, não obstante, e com nova roupagem, se vem insinuando na sua vontade de opressão. Não é a primeira vez.
Não deveríamos aceitar propósitos politicamente cínicos que encobrem movimentos diplomáticos duvidosos, escondem interesses corporativos em impensáveis alçapões e que, impercetivelmente, vão desregulando a dinâmica dos mercados, discursando muito liberalmente.
Cabe-nos contrapor projetos transparentes, pugnar por uma cidadania esclarecida capaz de denunciar grupos restritos que efetivamente confinam autonomias nacionais subvertendo valores e direitos há muito consagrados.
Luis Sepúlveda, ativista que não fugiu às balas quando Pinochet, coberto pelas armas norte americanas, instituiu no Chile uma ditadura militar, forçando-o ao exílio. Depois viandante europeu lutando ao lado de companheiros determinados a revelar manobras que assistiam economias instaladas, correndo eles o risco das vozes denunciantes, incómodas, algumas desaparecidas sem rasto — dizemos de práticas publicamente conhecidas como as da Shell Oil Company.

Sepúlveda escreveu textos para as gerações vindouras, responsabilizando-as sem contemplações — que despertem uma consciência universal capaz de assegurar a Vida, respeitando valores humanos e ambientais, sob pena de continuarmos na senda de uma inimaginável crise.
Nós, gerações arrastadas, elos de uma corrente já ferrugem, fizemos de facto Uma História Suja para desassossego de um homem que foi tomando uma voz rude, acusatória, gravando na pedra nomes que têm feito um tempo sombrio.
Mário Trigo

Fotografias de cena © Catarina Lobo
Ficha artística e técnica
Texto
A partir de História de Uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar
de Luis Sepúlveda
Tradução
Pedro Tamen
Encenação e Desenho de Luz
Mário Trigo
Interpretação
Milene Fialho e Rafael Barreto
Cenografia
Pedro Silva
Direção Técnica
Carlos Arroja
Operação Técnica e Design de Som
Diogo Graça
Direção de Produção
Inês Oliveira
Produção Executiva e Fotografia
Catarina Lobo
Ilustração
Alex Gozblau
Apoio à Gestão do Projeto
Maria Carneiro e Pedro Alves
Conceção de Figurinos
Ana Valentim
Assistência de Produção:
Carolina Viana, Beatriz Gonçalves, Raquel Rosa, Marta Dias, Rita Macieiro e Diogo Gonçalves
Coprodução
teatromosca e HIPÉRION Projeto Teatral
Media Partner
Rádio Alta Tensão
Apoios
Junta de Freguesia de Agualva e Mira Sintra, União das Freguesias do Cacém e São Marcos, Infraestruturas de Portugal e 5àSec Rio de Mouro
Agradecimentos
MUSGO Produção Cultural
O teatromosca é uma estrutura financiada pela República Portuguesa – Ministério da Cultura/Direção-Geral das Artes e pela Câmara Municipal de Sintra.
Apresentações
16, 17, 23 e 24 de março de 2024
17 e 18 de abril de 2024
no AMAS – Auditório Municipal António Silva