Contornos da dramaturgia
A luta continuada entre Israel e a Palestina oprimiu emocionalmente a pessoa de Jean Genet, pela devastação humana inerente, sim, mas principalmente pelo facto, perturbador, do seu filho adotivo seguir uma orientação terrorista que o movia para ações suicidas, compelindo inocentes.
O eixo deste espetáculo será uma peça cilíndrica de um confronto militar que fez a rotação de muitas gerações, soterrando vidas.
São causas deste confronto credos religiosos não tolerados, desígnios políticos incompatíveis, interesses territoriais sem mapeamento negociado, arcaísmos puxando emoções escamadas.
A diplomacia vem-se fazendo por corredores com alçapões inimagináveis. Resta à Comunidade Internacional apelar resolutamente para um acordo de paz que reconheça definitivamente dois Estados.
À parte o aço dos blindados, decorre em cena uma segunda linha narrativa centrada numa pulsão surrealizante que visa dissecar o cadáver Genet; amortalhado na causa palestina, agora literariamente reificado, recuando à condição de ‘bastardo’, de ‘ladrão’ — que o mesmo é dizer pouco tempo depois de um primogénito derramamento.
Nas dobras do tempo, as vidas, de Genet e da Palestina, encontraram-se num ponto histórico onde tudo desabou.
Teriam sido uma tentativa de aproximação a um texto de caminhada lenta, comedida, em direção ao poema.
Mário Trigo
Jean Genet, o homem, a escrita, o mundo, a guerra.
Uma paisagem de chão e mar. Um túmulo.
Jean Genet regressa à vida com o objetivo de reescrever a sua primeira peça, Haute Surveillance — Alta Vigilância, 1949.
Este regresso que traz para o palco um Genet em carne e osso, enérgico, criativo, torna-se também simbólico quando se descobre que foi motivado por uma força oculta, uma convocação extraordinária: a de Azzedine, a criança marroquina, agora adulta, cuja família Genet adaptou até ao fim da sua vida.
O escritor tem a imperiosa necessidade de responder às dúvidas de Azzedine, dúvidas que assentam sobretudo na questão palestiniana, tema muito caro a Genet. Para Azzedine, a vinda de Genet, mais do que um tributo, é a última oportunidade de obter uma resposta, saber qual a solução para a felicidade, para a paz.
Ao reescrever a peça Haute Surveillance, Genet tenta emendar as falas das personagens — Yeux-Verts, Maurice e Lefranc… pretende traçar conflitos trazendo para o texto a personagem feminina, Solange, ausente na peça original. As personagens revoltam-se, ameaçam suicidar-se em coletivo, na prisão.
Genet apercebe-se do desperdício do seu esforço, desinteressa-se, abandona a peça e, pressionado por Azzedine, pega noutro texto seu, Quatre Heures à Chatila – Quatro Horas em Chatila. O diálogo com Azzedine traz-lhe à memória o sofrimento do povo palestiniano, a crueldade dos massacres e da guerra que agora se inscrevem numa realidade mais sofisticada, de guerra cirúrgica e de atentados terroristas, insuportável para Genet.
Azzedine interage com as outras figuras. Todas têm em comum o ódio contra um sistema assente no comportamento violento, a autodestruição como arma de ameaça. O empenho de Azzedine na causa palestiniana desloca o diálogo para os temas do suicídio religioso, do terrorismo e dos conflitos entre civilizações. Mas a obsessão fanática, fundamentada numa recompensa religiosa post mortem, é, para Genet, um procedimento incompreensível, um dado novo e condenável naquela luta.
Genet procura algum consolo no seu último livro, Un Captif Amoreux — Um Cativo Amoroso, mas a memória dorida, a sua decadência física, fazem-no voltar para o túmulo; a lembrança da doença, o cancro na garganta, turvam-lhe o pensamento e, esgotado, afasta-se.
Azzedine antecipa-se, expõe o seu testamento político ao tempo que se apropria do túmulo, representação de imortalidade. Genet é forçado a manter-se no palco, sem possibilidade de retorno.
Convocada para a vida, a figura de Genet reencontra na densidade de criação a tarefa que sempre o obcecou: levar um texto à sua perfeição.
Excluído da morte, resta-lhe continuar a sua obra, escrevendo indeterminadamente como que tomando para si a maldição de Sísifo.
Se Genet causou escândalo continuado em vida, a sua personalidade e a sua obra não perderam hoje, em tempos tão diferentes, o seu extremo vigor provocatório. A beleza da escrita não atenua, antes vem reforçar a inconveniência das posições políticas. Genet é talvez mais maldito para nós, do que o foi para os seus contemporâneos.
Já não vivemos com bandeiras, mas com medos. Tomar Genet para motivo de uma peça é fatalmente convocar o que tememos. É confrontarmo-nos com a desesperança deste tempo em que o vazio ocidental se encontra com o fanatismo do oriente num combate que não tem um campo de batalha conhecido.
E é, ao mesmo tempo, abrir a possibilidade de uma reflexão, entre o texto, os atores e os espectadores, sobre os dias incertos que atravessamos, centrando o debate na guerra, na invasão arbitrária de uma potência sobre um país vizinho, nos seus terríveis efeitos humanos — o medo, a fome, a presença da morte, a fuga em jeito de expropriação.
Considerado por muitos um dramaturgo destacado, Jean Genet concebeu igualmente uma obra narrativa que constitui um poderoso imaginário com as suas implicações autobiográficas. Puxá-lo para nós, para o palco, não pode ser apenas um projeto literário, ou estético, ou mesmo político. Deverá ser um ato de envolvimento e de risco.
Jaime Rocha
Ficha artística e técnica
Texto
Jaime Rocha
Dramaturgia e Encenação
Mário Trigo com Jaime Rocha
Interpretação
Anilson Eugénio
Carolina Figueiredo
Mariana Capela
Miguel Coutinho
Philippe Araújo
Tiago Duarte
Espaço Cénico
Pedro Silva
Curadoria Figurinos
Nisa Eliziário
Desenho Luz
Mário Trigo
Design e Fotografia
Tânia Cadima
Gestão Apoios
Joana Ferreira
Produção
HIPÉRION Projeto Teatral
Apoio à Criação em Residência
teatromosca / Festival MUSCARIUM
Apoio Financeiro à Criação
Apoio
AZZEDINE
de Jaime Rocha
21 e 22 Setembro 2024
Sáb. 21h / Dom. 16h
M/16
No AMAS – Auditório Municipal António Silva
Shopping do Cacém,
Rua Coração de Maria nº 1
2735-470 Cacém